domingo, 28 de setembro de 2014

Eu, etiqueta

EU ETIQUETA

Em minha calça está grudado um nome
Que não é meu de batismo ou de cartório
Um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
Que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro
Que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produtos
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
De alguma coisa não provada
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
Minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara,
Minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo.
Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens,
Letras falantes,
Gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências.
Costume, hábito, permência,
Indispensabilidade,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
Escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
Seja negar minha identidade,
Trocá-la por mil, açambarcando
Todas as marcas registradas,
Todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio
Ora vulgar ora bizarro.
Em língua nacional ou em qualquer língua
(Qualquer principalmente.)
E nisto me comparo, tiro glória
De minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
Para anunciar, para vender
Em bares festas praias pérgulas piscinas,
E bem à vista exibo esta etiqueta
Global no corpo que desiste
De ser veste e sandália de uma essência
Tão viva, independente,
Que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
Meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais,
Tão minhas que no rosto se espelhavam
E cada gesto, cada olhar
Cada vinco da roupa
Sou gravado de forma universal,
Saio da estamparia, não de casa,
Da vitrine me tiram, recolocam,
Objeto pulsante mas objeto
Que se oferece como signo dos outros
Objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
De ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa.
Eu sou a Coisa, coisamente.
Carlos Drummond de Andrade

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

fragmentos de um discurso amoroso

ADORÁVEL: Não conseguindo nomear a especialidade do seu desejo pelo ser amado, o sujeito amoroso acaba chegando a esta palavra meio boba: adorável.

Por uma lógica singular, o sujeito amoroso percebe o outro como um Todo e, ao mesmo tempo, esse Todo parece-lhe comportar um resto, que ele não pode dizer. É todo o outro que produz nele uma visão estética: louva-o por ser perfeito, vangloria-se por tê-lo escolhido perfeito; imagina que o outro quer ser amado como ele próprio gostaria de ser, não por tal ou qual de suas qualidades, mas pelo todo, e esse todo concede –o a ele sob a forma de uma palavra vazia, pois Todo não poderia inventoriar-se sem se diminuir: sob Adorável! Nenhuma qualidade vem abrigar-se, mas apenas o todo do afeto. Entretanto, ao mesmo tempo que adorável diz tudo, diz também o que falta ao todo; quer designar aquele lugar do outro no qual vem agarrar-se especialmente meu desejo, mas esse lugar não é designável; dele, jamais saberei nada ; minha linguagem tateará, gaguejará incessantemente para tentar dizê-lo, mas nunca poderei produzir nada além de uma palavra vazia, que é como o grau zero de todos os lugares em que se forma o desejo muito especial que tenho por aquele outro ( e não por um outro qualquer).

Encontro em minha vida milhares de corpos; desses milhares, posso desejar algumas centenas; mas dessas centenas , amo apenas um. O outro de que estou enamorado me designa a especialidade do meu desejo.

Essa escolha, tão rigorosa, que só conserva o Único, constitui, dizem, a diferença entre a transferência analítica e a transferência amorosa; uma é universal, a outra é específica. Foram necessários muitos acasos, muitas coincidências surpreendentes ( e talvez muitas pesquisas), para que eu encontrasse a Imagem que, entre mil, conviesse ao meu desejo. Este é um grande enigma do qual jamais descobrirei a chave: por que desejo Fulano? Por que o desejo duravelmente, langorosamente? Seria acaso todo ele que desejo? Ou seria apenas um pedaço desse corpo? E, nesse caso, o que, nesse corpo amado, tem vocação de fetiche para mim? Que porção, talvez incrivelmente tênue, que acidente ?

Adorável quer dizer: isto é meu desejo enquanto é único: “ É isso! É exatamente isso ( que eu amo)!”. Entretanto, quanto mais experimento a especialidade de meu desejo, menos posso nomeá-la; à precisão do alvo corresponde um tremor do nome; o próprio desejo só pode produzir um impróprio do enunciado. Desse malogro linguajeiro, não resta senão um vestígio: a palavra “adorável” ( a tradução exata de “ adorável” seria o ipse latino; é ele, é ele mesmo em pessoa.

Adorável é o vestígio fútil de um cansaço, que é o cansaço da linguagem. De palavra em palavra, esgoto-me dizendo de modos outros o mesmo de minha Imagem, impropriamente o próprio de meu desejo; viagem ao termo da qual minha última filosofia só pode ser a de reconhecer – e de praticar – a tautologia. É adorável o que é adorável. Ou ainda: eu te adoro porque você é adorável, eu te amo porque eu te amo. O que fecha assim a linguagem amorosa é exatamente o mesmo que a instituiu: a fascinação. Pois descrever a fascinação é coisa que não poderia jamais, no final das contas, exceder este enunciado: “ estou fascinado”. Tendo atingido o extremo da linguagem, ali onde ela não pode senão repetir sua última palavra, á semelhança de um disco riscado, embriago-me com sua afirmação: a tautologia não seria aquele estado inaudito, no qual se encontram, misturados todos os valores, o fim glorioso da operação lógica, o obsceno da tolice e a explosão do sim nietzscheano?

Roland Barthes- Fragmentos de um discurso amoroso

sábado, 6 de junho de 2009

Faça bonito...

Vivemos em um mundo onde prevalece o egoísmo, a falsidade, o desrespeito com a vida..Vamos fazer diferente? Que tal se cada um de nós for uma sementinha para plantar coisas belas? Se cada um de nós colocar o amor em tudo que existe ao nosso redor? Vamos Fazer bonito?

um impulso

Ninguém pode construir em teu lugar as pontes
que precisarás passar para atravessar o rio da vida.
Ninguém, exceto tu, só tu.
Existem, por certo, atalhos sem número, e pontes, e semideuses
que se oferecerão para levar-te além do rio,
mas isso te custaria a tua própria pessoa:tu te hipotecarias e te perderias.
Existe no mundo um único caminho por onde só tu podes passar.
Aonde leva?
Não perguntes,
segue-o!

Friedrich Nietzsche